As fissuras de lábio e palato, conhecidas também como lábio leporino e fenda palatina (ou “céu da boca aberto”), correspondem à malformação congênita mais comum da face, com uma incidência aproximada de 1 caso para cada 700 nascimentos. A criança pode apresentar apenas uma fissura de lábio, uma fissura de lábio e palato ou apenas a fissura do palato. A fissura do lábio pode ser incompleta ou completa, com comprometimento unilateral ou bilateral. A fissura do palato também pode ter extensão variável e ser unilateral ou bilateral.
Causas de lábio leporino e fenda palatina
Em cerca de um terço dos casos, a criança com fissura apresenta um parente que também teve fissura. Nos outros dois terços dos casos, não há nenhuma história familiar. A fissura não acontece em consequência de algum fato específico ocorrido com a mãe durante a gestação. Foram descobertos diversos genes associados à fissura labiopalatina, e várias drogas diferentes (álcool, cigarros, algumas medicações anticonvulsivantes, derivados de vitaminha A) também estão relacionadas a uma maior incidência de fissuras. No entanto, o mais provável é que diversos fatores contribuam para a ocorrência de uma fissura, caracterizando uma origem multifatorial.
Diagnosticando uma fissura
Com o avanço da ultrassonografia, muitas fissuras podem ser diagnosticadas intra-útero. Apesar disso, algumas crianças têm seu diagnóstico realizado apenas ao nascimento, causando supresa para os médicos e principalmente para os familiares. Algumas fissuras de palato podem ter um diagnóstico ainda mais tardio, quando a criança inicia a fala. São as fissuras de palato submucosas ou fissuras ocultas, em que a mucosa oral se encontra íntegra, mas a musculatura e os ossos estão separados. Crianças nascidas com fissura de lábio e palato devem ser avaliadas por médicos experientes, investigando e afastando outros problemas que podem estar associados ao quadro. As crianças que apresentam uma fissura isolada do palato, especialmente se elas também apresentam uma mandíbula pequena, devem ser avaliadas por um especialista em genética médica para afastar o diagnóstico de Sequência de Pierre Robin, Síndrome Velocardiofacial, dentre outras síndromes.
Tratamento
O tratamento a ser empregado vai depender do tipo de fissura que a criança apresentar, seja uma fissura isolada de lábio, seja uma fissura lábio-palatina ou uma fissura isolada de palato. Existem diversas técnicas descritas na literatura para o tratamento das fissuras de lábio e palato e os cirurgiões podem divergir em relação à técnica a ser utilizada, bem como a idade adequada para o reparo. É necessário tirar todas as suas dúvidas em relação à cronologia e ao tipo de tratamento que vai ser empregado pelo seu cirurgião. Algumas questões básicas relacionadas ao tratamento de pacientes fissurados dizem respeito à:
• Alimentação
• Audição
• Cirurgia do lábio
• Cirurgia do palato
• Desenvolvimento da fala
• Rinoplastia
• Enxerto ósseo alveolar
• Cirurgia Ortognática
1. Alimentação: as crianças nascidas com uma fissura de palato apresentam uma comunicação da boca com o nariz e não conseguem criar sucção oral. Com isso, vão apresentar dificuldade em conseguir uma quantidade suficiente de leite (ou complemento). As mamadas são naturalmente mais longas e o bebê fica cansado com mais facilidade. É comum o bebê dormir de cansaço e acordar cerca de uma hora depois chorando de fome, o que torna o processo de amamentação frustrante e cansativo para os pais. Ainda assim, o aleitamento materno deve ser estimulado como a melhor opção. Caso o leite materno seja retirado e oferecido em mamadeiras, medidas que podem ajudar a alimentação do bebê fissurado incluem aumentar o furo do bico da mamadeira e usar garrafas do tipo squeeze, para aumentar o aporte de leite para o bebê numa fase inicial. Posteriormente, são utilizados bicos ortodônticos com o furo para cima, confeccionados tanto para a fissura de lábio quanto para a fissura de palato, que ajudam na amamentação. Placas intra-orais confeccionadas sob medida para o bebê ajudam a separar a cavidade oral da nasal, facilitando a deglutição. Um posicionamento mais verticalizado do bebê (posição semi-sentada) também ajuda a melhorar o fluxo do leite e evita a aspiração.
2. Audição: quando a musculatura do palato está normal, a movimentação do palato promove a dilatação e drenagem das tubas auditivas para a rinofaringe. Quando há uma fenda do palato, a sua musculatura se insere de forma incorreta sobre a fenda e não há movimentação adequada das tubas auditivas, propiciando o acúmulo de líquido (otite serosa). O acúmulo crônico pode ocasionar infecções de repetição, o que pode levar, por sua vez, a perdas auditivas. A diminuição da audição em crianças prejudica o desenvolvimento da fala, pois é importante que a criança ouça bem para falar bem e aprender. Com os mecanismos de aprendizado e de fala comprometidos, a criança pode apresentar problemas de comportamento e até alterações psicossociais. Quando a criança está sob risco de perda de audição, pode ser necessária a inserção de um tubo de ventilação (“carretel”), para permitir a drenagem do líquido e aliviar os sintomas. O ideal é que a criança seja avaliada por um Otorrinolanringologista, fazendo audiometrias e avaliando regularmente a sua capacidade auditiva. Caso seja necessária a inserção de tubos de ventilação, isso deve ser coordenado com as cirurgias para o lábio e o palato, de modo a reduzir o número total de cirurgias às quais a criança será submetida.
3. Cirurgia do lábio: apesar da ansiedade extrema dos pais, a cirurgia para correção do lábio fissurado não costuma ser realizada em bebês recém-nascidos. Embora alguns trabalhos mostrem a realização da cirurgia em recém-nascidos, sua vantagem está mais relacionada ao tratamento da ansiedade e frustração dos pais que um benefício real para o bebê. Existem algumas regras básicas que devem ser observadas para que a criança possa ser submetida à cirurgia com segurança, principalmente no que diz respeito à sua idade e peso, levando a cirurgia a ser realizada em torno dos 3 meses de idade.
No pré-operatório, embora seja controverso, costumamos fazer uso de uma fita para aproximar as vertentes labiais, diminuindo assim o defeito e facilitando a cirurgia.
Entre as inúmeras técnicas cirúrgicas descritas na literatura, as mais comuns envolvem uma “rotação e avanço” dos tecidos e a confecção de “retalhos triangulares”. A tendência mundial, no entanto, envolve uma flexibilização dos protocolos, com a associação de técnicas que são escolhidas especialmente para cada caso.
Independente da técnica utilizada, alguns objetivos básicos devem ser alcançados em uma cirurgia para correção da fissura labial: reconstrução do fundo de vestíbulo oral (o sulco entre a gengiva e o lábio), reconstrução do assoalho nasal, isolando a cavidade oral da cavidade nasal, reconstrução da cinta muscular labial, permitindo uma adequada movimentação dos lábios, e finalmente, reconstrução da pele e do vermelhão dos lábios, restabelecendo a anatomia normal e a harmonia estética da região.
4. Cirurgia do palato: as fissuras do palato (“céu da boca”) podem ser unilaterais ou bilaterais, acometendo o palato completamente, o que inclui a reborda alveolar (gengiva), ou de forma incompleta, apenas em sua parte posterior. Geralmente, quando o bebê tem uma fissura de lábio, a fissura de palato tende a ser completa, mas uma combinação variável de extensão de acometimento pode estar presente e não há regras.
As fissuras isoladas de palato estão mais comumente associadas a outras malformações sistêmicas ou ainda podem fazer parte de outros quadros ou síndromes, como acontece na Sequência de Pierre Robin e na Síndrome Velocardiofacial. Em alguns casos, a úvula se encontra bífida, os ossos palatinos e a musculatura se encontram fissurados, mas a mucosa palatina se encontra íntegra. Essa é a chamada Fissura Submucosa.
Como o palato está aparentemente normal (com a mucosa totalmente fechada), algumas vezes o seu diagnóstico pode ser mais tardio, sendo feito apenas quando a criança começa a falar e apresenta distúrbios característicos da fala.
O tratamento do palato fissurado se inicia no pré-operatório, com o que chamamos “ortopedia dos maxilares” ou “ortopedia pré-cirúrgica”.
Trata-se da manipulação do palato com o uso de placas moldadas e confeccionadas pelo Ortodontista. Essas placas são constantemente remodeladas a medida que o bebê cresce e atuam mobilizando passivamente os ossos palatinos para uma posição mais favorável. Embora a ortopedia pré-cirúrgica seja controversa, com muitos grupos não recomendando o seu uso, acredito que a mobilização pré-operatória promove um alinhamento das lâminas palatinas que favorece a cirurgia. Além disso, a placa permite uma oclusão da cavidade oral, o que facilita a sucção e alimentação do bebê.
A idade ideal para o fechamento do palato varia muito entre os diversos centros especializados ao redor do mundo. Como o palato se divide em palato duro (onde se encontram os ossos palatinos, anteriormente) e palato mole (onde se encontra a musculatura, posteriormente), várias questões surgem relacionadas não apenas ao fechamento de ambos em tempo único ou separadamente, mas também qual deve ser fechado primeiro. Alguns centros, por exemplo, defendem o fechamento precoce do palato mole junto com o reparo do lábio (em torno dos três meses), para então realizar o fechamento do palato duro entre os 9 e os 18 meses (segundo o protocolo de Göteborg). Outros Serviços fecham o palato mole entre 9 e 12 meses (separadamente do lábio) e fecham o palato duro apenas na época da enxertia óssea alveolar, por volta dos 8 anos de idade (protocolo de Rotterdam).
Nos Estados Unidos, a tendência é o fechamento do palato em um tempo único. Há ainda a tendência, seguindo os protocolos de Oslo e de Londres (segundo Sommerlad), de se realizar o fechamento do palato duro junto ao reparo do lábio precocemente e o fechamento do palato mole aos 9 meses de idade. Na minha opinião, o fechamento do palato em dois tempos parece ser o ideal, pois a aproximação das lâminas palatinas parcialmente leva à diminuição do tamanho da fenda remanescente, o que facillita a cirurgia no segundo tempo. Minha preferência pessoal é para o fechamento do palato duro precocemente, como aprendido com Sommerlad. Dessa forma, a fissura do palato mole tende a estar menor quando da data da segunda cirurgia, o que torna sua abordagem mais fácil. Considerando que o palato mole íntegro e com a musculatura corretamente reconstruída é fundamental para o bom desenvolvimento da fala, tornar essa cirurgia mais fácil e dedicar o tempo operatório exclusivamente para essa região parece ser bem razoável.
Em relação à cirurgia propriamente dita, existem diversas técnicas operatórias descritas para o fechamento do palato. Entre os objetivos que devem ser perseguidos em uma cirurgia para correção de fissura de palato, pode-se destacar: a reconstrução da cinta muscular do véu palatino, com reposição posterior da musculatura de modo a permitir um bom desenvolvimento da fala, fechamento da fissura do palato propriamente dita, com reconstrução do assoalho nasal e da mucosa oral, procurando evitar o desenvolvimento de fístulas oro-nasais (orifícios de comunicação entre a boca e o nariz) e provocar o menor trauma cirúrgico possível de modo a permitir o crescimento da maxila.
É importante que toda criança submetida ao reparo cirúrgico da fissura palatina seja acompanhada por um especialista em Fonoaudiologia, preferencialmente acostumado a avaliar pacientes com fissura de lábio e palato. Em alguns casos, a criança mantém alterações características da fala mesmo com a cirurgia adequada realizada em momento ideal. Cerca de uma em cada cinco crianças pode necessitar de uma segunda cirurgia para melhorar a fala. Também nesse caso existem diversas cirurgias que podem ser realizadas, entre elas uma re-palatoplastia, tentando reposicionar mais posteriormente os retalhos palatinos, ou ainda uma esfincteroplastia, na qual músculos são cortados da região lateral da faringe e aproximados em sua região posterior. Em uma terceira opção pode ser realizado um retalho faríngeo posterior, em que um retalho é cortado da região posterior da faringe e suturado na região posterior do palato. Cada técnica apresenta suas vantagens e desvantagens e deve ser selecionada conforme o caso individualizado e segundo a experiência do cirurgião.
5. Desenvolvimento da fala: o desenvolvimento da fala é um processo extremamente complexo. Estima-se que cerca de 5 a 10% de todas as crianças apresentem algum distúrbio no desenvolvimento da linguagem. Na criança com fissura de palato, a presença da fenda comunicando a cavidade oral com a nasal e a musculatura da região velofaríngea mal posicionada criam um defeito anatômico que prejudica a correta emissão vocal e a articulação de alguns fonemas. Ocorre uma hipernasalidade (“voz fanha”) e a criança pode não ser compreendida em sua fala.
A partir dos 6 a 8 meses, a criança começa a emitir seus primeiros polissílabos e balbucios e entre os 12 e 18 meses surgem as primeiras palavras verdadeiras. Daí decorre a vantagem de se realizar a cirurgia para correção da fenda palatina em torno dos 12 meses, de modo que a criança possa desenvolver sua linguagem com a anatomia já restabelecida.
No entanto, mesmo com a correção cirúrgica adequada e em idade ideal, um percentual variável de crianças vai desenvolver algum grau de insuficiência velofarígea, com distúrbios de linguagem. Nesses casos, uma nova intervenção cirúrgica pode ser necessária. Uma avaliação específica e acompanhamento por Fonoaudióloga é, portanto, fundamental para todos os pacientes com fissuras de palato.
6. Rinoplastia em fissurado: assim como no reparo do lábio e do palato, a rinoplastia em pacientes fissurados apresenta controvérsias envolvendo a idade ideal para o procedimento, bem como as técnicas cirúrgicas empregadas. Quando a fissura de lábio é unilateral, o septo nasal se encontra desviado e ocorre assimetria de narinas, com o achatamento da narina no lado fissurado. Já na fissura bilateral de lábio, o nariz se encontra achatado bilateralmente, sem projeção de sua ponta na visão de perfil. A maioria das crianças com o lábio acometido, mesmo com o palato normal, vai necessitar de uma ou mais cirurgias para normalizar a aparência do nariz. A primeira cirurgia no nariz é geralmente feita no mesmo tempo que a cirurgia do lábio. Outras cirurgias podem ser necessárias, sendo feitas em geral na fase pré-escolar ou apenas na adolescência, de acordo com o defeito residual e com o desejo do paciente.
7. Enxerto ósseo alveolar: quando o paciente apresenta uma fissura labiopalatina, a reborda alveolar (região da gengiva) também se apresenta fissurada. A correção da fissura alveolar é importante para restabelecer a integridade do arco dentário, estabilizando os segmentos da maxila e permitindo um adequado tratamento ortodôntico. A cirurgia para tratamento da fenda alveolar consiste na colocação de enxerto ósseo retirado da crista ilíaca (pequenos fragmentos de osso colhidos da bacia) e deve ser realizada por volta dos 8 anos de idade, no momento de dentição mista, antes da erupção do dente canino permanente. O fechamento da fenda alveolar em tempo apropriado permite a migração dos dentes definitivos através da fenda, contribuindo para a formação de uma arcada dentária estável e adequada.
8. Cirurgia ortognática em fissurado: mesmo com um tratamento adequado para o lábio e o palato, alguns pacientes fissurados vão evoluir com alterações dento-esqueléticas (da mordida e dos maxilares) que vão necessitar de correção cirúrgica. O tratamento ortodôntico é associado então ao tratamento cirúrgico, conhecido como cirurgia ortognática. A principal alteração facial esquelética no paciente fissurado é a deficiência ântero-posterior de maxila, que pode ser corrigida com um avanço de maxila, também conhecido como cirurgia Le Fort I. A cirurgia deve ser idealmente realizada após o término do crescimento do esqueleto facial para diminuir a chance de recidivas, o que ocorre somente entre os 16-17 anos para as meninas e os 18-19 anos para os meninos.